Sempre esteve ali. E sempre olhei,
mas nunca vi. Enxergava apenas os contornos que não perdiam um único detalhe, a
exata reprodução de mim. Mas não era eu. Era reflexo, imagem invertida, contrário
do disforme que sempre fui. Nunca quis ver. Primeiro não importava. Quando
importou, preferi fugir, nunca prestar atenção.
Mas naquele dia eu olhava, e
mesmo procurando, não mais me via. Ou via, via uma outra coisa que eu não
reconhecia. E toquei meu corpo. Aproximei o rosto. Encostei no espelho. Mas
tocava e não sentia. Fui afundando meu corpo cada vez mais e mais. E me deixava
engolir como se estivesse enfeitiçada, ou talvez fosse simples torpor de quem
não se importa com o que está acontecendo.
Afundaram-se meus dedos. Minha mão.
Meu braço. E o que antes era leve sensação me puxou com força, me tirou o ar. Meu
coração acelerou, sufoquei. Quando fui sugada pela imagem que eu fazia de mim
mesma, mergulhei no total vazio. Mas era um vazio cheio de tudo, um vazio de
excesso. Tantas cores, tantas formas, cheiros, gostos, sons... que eu nada absorvia.
Não fui Alice, mas comi do bolo. Bebi
do líquido. Nem sei em quantos tamanhos me tornei. Mas o mundo ao meu redor
crescia e diminuía também, e nunca tive certeza se alguma coisa havia mesmo
mudado. Do outro lado, do meu lado do espelho, quando minhas angústias tinham
motivo concreto eu me confortava com a esperança de que em algum momento
poderiam passar. Mas agora que não fazem mais sentido, não sei mais lidar com
elas, não sei o que esperar de mim.
Flutuei, tirei os pés do chão. E
enquanto plainava alto, me via na praia sendo engolida pela fúria do mar. E não
sabia se me afogava ou voava. Se meus pulmões eram limpos pelo ar fresco ou
invadidos pela água salgada. Se eu era as duas, não poderia fazer ideia de qual
das duas eu era.
Eu – ou elas? – brigavam, se
desentendiam. Uma berrava, implorava ajuda, a outra estava desesperada demais
para se aproximar. Até serem empurradas para a areia. Tentei me encontrar, mas
fugi, me perdi de mim. E fiquei ali, o tempo todo. Doía. Se já não acreditava
mais em minhas certezas, não fazia ideia do faria com minhas dúvidas.
Corri ao meu encontro. Corri de
mim. Gritei. Ninguém ouviu. Caí, afoguei em mim mesma. Mergulhada nos sonhos
que não tinha, nos medos que não sentia, nas coisas que não via, nos amores que
não senti. E voltei. Acordei do meu lado do espelho. Sem saber se aquele seria
mesmo o meu lado. Como em um sonho em que sempre sonhamos que acordamos, e
ficamos desesperados ao perceber, mais uma vez, que estávamos dormindo.
Quando voltei, não era mais eu.
Era uma outra coisa que me fazia entrar em constante conflito com minhas
identidades anteriores, com minha alteridade que não poderia mais ser definida
pelas mesmas relações. Porque a mudança foi só minha, mas todos continuavam os
mesmos, eram todos ainda sempre tão iguais. Iguais demais para que pudessem
entender a complexidade do que me tornei. Ou sempre fui. E virei ilha. Rodeada de
buracos. Nem todos vazios.
O aceitável para os outros foi se
tornando cada vez mais insuportável para mim. E encontraria milhões de dedos
que me apontariam pelos meus questionamentos, por essa inconformidade. “Mas
todo mundo vive assim, qual é o seu problema?”. Mas eu não poderia mais viver
daquele jeito. E não posso falar para ninguém sobre a angústia que me
consumiria cada vez mais. Não restaria para mim outra opção senão fugir.
Mas não teria sequer para onde
ir. Quando voltei, tive a certeza de que não haveria jamais lugar para mim.
Estar perdida sequer seria uma opção, pois quem se perdeu é porque em algum
momento escolheu um caminho. Eu nunca tive uma escolha para fazer.
Quando me olhei novamente no
espelho, vi aquela não era eu. Nunca foi.
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Áhh, que fofo você comentar!!!