Lá vou eu, passeando pelos sebos da vida, quando me deparo com a
coleção “Obras imortais de nossa literatura”. Vi o livro As tardes de um pintor e, como eu não conhecia o seu autor,
Teixeira Sousa (perdoem-me uzamiguinhos letrados-pseudo-cult), resolvi pegar o
exemplar e me aventurar em uma leitura clássica do romantismo, já que o livro
foi publicado em 1847.
Tudo bem que eu já esperava aquela lenga-lenga de amor-platônico-jamais-consumado,
meninas-virgens-de-seios-alvos-imaculados e tragédia-xêrau-morre-no-final, mas
as enxurradas de discursos preconceituosos ao longo da narrativa foram para mim
uma surpresa. Discursos que legitimam com a maior naturalidade uma série de
estereótipos comuns à época e que ainda hoje têm seus reflexos.
Encontrar isso em uma coleção intitulada “Obras imortais da nossa
literatura” me deixou, no mínimo, decepcionada. Mas não vou ficar aqui
questionando qual é o critério para que um autor seja eleito um puta de um escritor,
já que Monteiro Lobato, racista até dizer chega, é referência de literatura
infantil. Logo, em vez de ficar divagando em minha costumeira enrolação,
resolvi reproduzir aqui alguns trechos do livro, com direito, é claro, à
algumas observações.
“Justo era cigano, e em nada
desmentia o caráter de sua raça vagabunda, interesseira e desamorosa”.
Ou seja, todo cigano é filho da puta. Uma ótima generalização, dessas
que você ensina para as criancinhas, desmerecendo toda a cultura de um povo,
que só sabe ser vagabundo, interesseiro e desamoroso.
“Os índios de sexo masculino eram por natureza indolentes, e bem que
amigos de novidade, eram contudo baldos de todo talento inventivo; as mulheres,
como sabemos, além de lascivas, eram incontinentes”.
Sim, porque os índios prestam apenas para serem escravizados por nós,
brancos-de-raça-superior, que “por natureza” somos civilizados.
“-(..) Porque aquele homem tem
cara de judeu.
- Mas quem vê cara não vê corações.
- Quase
sempre, meu filho, quem tem má cara, tem mau coração”
Então, todo judeu é também filho da puta. Se for feio (e narigudo)
então, aí é que é filho da puta mesmo. Talvez isso explique o holocausto.
“É triste maneira de conciliar a
obediência filial com as simpatias do coração! Triste, muito triste! Morrer
para não desobedecer a um pai, e para não se casar com quem não se ama, é um
sacrifício desnecessário e talvez estupidamente oferecido às leis paternais e
ao próprio amor! Mas esse sacrifício todavia é sublime!”
Ou seja, desrespeitar o papaco num pódi. Nesses casos, recomenda-se o
suicídio. Você não casa com quem não ama, não descumpre o desejo de seu
progenitor e ainda sai de a-bunita-coitadinha-mártir-sofredora.
“Abraçou o ateísmo com uma
convicção robusta e inteiramente arraigada em sua alma! Tendo o jovem chegado a
esse ponto, que muito era que se arrojasse ao medonho abismo, em que negrejam e
redemoinham os mais hediondos crimes?!”
Quem é ateu também é consequentemente ladrão, assassino, estuprador
(se é que para o Teixeirinha estupro é crime e não culpa da moça que se deixou
deflorar), tudo de pior na face da terra, porque não aceitou xêzuis no coração.
E apesar de, é claro, já esperar esse tipo de discurso, eu não poderia
deixar de reproduzir aqui a tradicional referência à mulher nesses tipos de
livro, que é aquela que eu, que você, que mais um monte de gente cresceu ouvindo
ser a clássica moça-para-casar. Aquela que quando eu tinha nove anos eu queria
ser, já que era apaixonada por esse tipo de literatura e sonhava em viver um
amor-avassalador-tipo-conto-de-fadas. Mas que logo depois eu desisti de ser, já
que percebi não ter a mínima vocação para o “tipo-de-moça-para-casar”, nem ter
paciência para o “tipo-garboso-senhor-cavalheiro” que quer uma “tipo-de-moça-para-casar”.
“Clara... encantadora Clara...
mulher tão formosa e tão bela... mulher tão digna de uma felicidade suprema...
Clara, tão bela, tão formosa, quão inocente, quão pura, quão virtuosa! (...) Diríeis
que era uma virgem bela como suas esperanças; pura como seu amor; e inocente
como sua infância (...)”
Traduzindo: deu antes de casar? Tudo puta.
Depois dessa enxurrada de clichês, lugar comum e preconceitos sem fundamento
algum (não desmerecendo a referência ao suicídio-santificador), alguém duvida
que se hoje Teixeira Nunes fosse vivo, ele seria um reaça com coluna exclusiva na
Veja?
E aí, vocês me perguntam: por que você continuou lendo esse livro? Digo
que para fazer uma análise crítica do tipo de literatura que me agradava quando
eu ainda mal sabia ler. Uma pré-adolescente que entendia o conteúdo, mas ainda
não tinha capacidade cognitiva de fazer uma avaliação crítica do conteúdo consumido,
e sem perceber vai incorporando uma série de discursos como legítimos, afinal,
está escrito no livro. Para minha felicidade, aprendi a me libertar de muitas construções
sociais que me foram impostas durante toda a vida, tão “naturais” quanto
nocivas.
Ainda assim, li. Li tudo e
achei o livro um porre. Li esperando muito chegar ao final, para poder enfim
degustar com vontade (pelo menos assim espero) minha próxima leitura. O final
da narrativa não me surpreendeu em nada, todos os malvados foram para a caixa
prego, a heroína virgem morreu virgem (sem ver um pintinho sequer), e o mocinho
ficou sofrendo.
Mas o que mais me chocou foi que, na última página, apesar de não ter
gostado da estória, apesar de tudo que eu citei aí acima, apesar de estar de
saco cheio do livro... eu chorei. Fiquei triste pelo moço bonzinho que se fudeu
o enredo todo e resolveu virar frade franciscano nas últimas páginas. Talvez
sejam vestígios da leitora juvenil que ainda existe em mim, ansiosa por
romances-óbvios-mamão-com-açucar.
Vá entender. Acho melhor ir agora de Chuck Palahniuk.