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27 de nov. de 2013

Surpresa literária



Lá vou eu, passeando pelos sebos da vida, quando me deparo com a coleção “Obras imortais de nossa literatura”. Vi o livro As tardes de um pintor e, como eu não conhecia o seu autor, Teixeira Sousa (perdoem-me uzamiguinhos letrados-pseudo-cult), resolvi pegar o exemplar e me aventurar em uma leitura clássica do romantismo, já que o livro foi publicado em 1847.

Tudo bem que eu já esperava aquela lenga-lenga de amor-platônico-jamais-consumado, meninas-virgens-de-seios-alvos-imaculados e tragédia-xêrau-morre-no-final, mas as enxurradas de discursos preconceituosos ao longo da narrativa foram para mim uma surpresa. Discursos que legitimam com a maior naturalidade uma série de estereótipos comuns à época e que ainda hoje têm seus reflexos.

Encontrar isso em uma coleção intitulada “Obras imortais da nossa literatura” me deixou, no mínimo, decepcionada. Mas não vou ficar aqui questionando qual é o critério para que um autor seja eleito um puta de um escritor, já que Monteiro Lobato, racista até dizer chega, é referência de literatura infantil. Logo, em vez de ficar divagando em minha costumeira enrolação, resolvi reproduzir aqui alguns trechos do livro, com direito, é claro, à algumas observações.

“Justo era cigano, e em nada desmentia o caráter de sua raça vagabunda, interesseira e desamorosa”.
Ou seja, todo cigano é filho da puta. Uma ótima generalização, dessas que você ensina para as criancinhas, desmerecendo toda a cultura de um povo, que só sabe ser vagabundo, interesseiro e desamoroso.

“Os índios de sexo masculino eram por natureza indolentes, e bem que amigos de novidade, eram contudo baldos de todo talento inventivo; as mulheres, como sabemos, além de lascivas, eram incontinentes”.
Sim, porque os índios prestam apenas para serem escravizados por nós, brancos-de-raça-superior, que “por natureza” somos civilizados.

“-(..) Porque aquele homem tem cara de judeu.
  - Mas quem vê cara não vê corações.
  - Quase sempre, meu filho, quem tem má cara, tem mau coração”
Então, todo judeu é também filho da puta. Se for feio (e narigudo) então, aí é que é filho da puta mesmo. Talvez isso explique o holocausto.

“É triste maneira de conciliar a obediência filial com as simpatias do coração! Triste, muito triste! Morrer para não desobedecer a um pai, e para não se casar com quem não se ama, é um sacrifício desnecessário e talvez estupidamente oferecido às leis paternais e ao próprio amor! Mas esse sacrifício todavia é sublime!”
Ou seja, desrespeitar o papaco num pódi. Nesses casos, recomenda-se o suicídio. Você não casa com quem não ama, não descumpre o desejo de seu progenitor e ainda sai de a-bunita-coitadinha-mártir-sofredora.

“Abraçou o ateísmo com uma convicção robusta e inteiramente arraigada em sua alma! Tendo o jovem chegado a esse ponto, que muito era que se arrojasse ao medonho abismo, em que negrejam e redemoinham os mais hediondos crimes?!”
Quem é ateu também é consequentemente ladrão, assassino, estuprador (se é que para o Teixeirinha estupro é crime e não culpa da moça que se deixou deflorar), tudo de pior na face da terra, porque não aceitou xêzuis no coração.

E apesar de, é claro, já esperar esse tipo de discurso, eu não poderia deixar de reproduzir aqui a tradicional referência à mulher nesses tipos de livro, que é aquela que eu, que você, que mais um monte de gente cresceu ouvindo ser a clássica moça-para-casar. Aquela que quando eu tinha nove anos eu queria ser, já que era apaixonada por esse tipo de literatura e sonhava em viver um amor-avassalador-tipo-conto-de-fadas. Mas que logo depois eu desisti de ser, já que percebi não ter a mínima vocação para o “tipo-de-moça-para-casar”, nem ter paciência para o “tipo-garboso-senhor-cavalheiro” que quer uma “tipo-de-moça-para-casar”.

“Clara... encantadora Clara... mulher tão formosa e tão bela... mulher tão digna de uma felicidade suprema... Clara, tão bela, tão formosa, quão inocente, quão pura, quão virtuosa! (...) Diríeis que era uma virgem bela como suas esperanças; pura como seu amor; e inocente como sua infância (...)”
Traduzindo: deu antes de casar? Tudo puta.  

Depois dessa enxurrada de clichês, lugar comum e preconceitos sem fundamento algum (não desmerecendo a referência ao suicídio-santificador), alguém duvida que se hoje Teixeira Nunes fosse vivo, ele seria um reaça com coluna exclusiva na Veja?

E aí, vocês me perguntam: por que você continuou lendo esse livro? Digo que para fazer uma análise crítica do tipo de literatura que me agradava quando eu ainda mal sabia ler. Uma pré-adolescente que entendia o conteúdo, mas ainda não tinha capacidade cognitiva de fazer uma avaliação crítica do conteúdo consumido, e sem perceber vai incorporando uma série de discursos como legítimos, afinal, está escrito no livro. Para minha felicidade, aprendi a me libertar de muitas construções sociais que me foram impostas durante toda a vida, tão “naturais” quanto nocivas.    

Ainda assim, li.  Li tudo e achei o livro um porre. Li esperando muito chegar ao final, para poder enfim degustar com vontade (pelo menos assim espero) minha próxima leitura. O final da narrativa não me surpreendeu em nada, todos os malvados foram para a caixa prego, a heroína virgem morreu virgem (sem ver um pintinho sequer), e o mocinho ficou sofrendo.


Mas o que mais me chocou foi que, na última página, apesar de não ter gostado da estória, apesar de tudo que eu citei aí acima, apesar de estar de saco cheio do livro... eu chorei. Fiquei triste pelo moço bonzinho que se fudeu o enredo todo e resolveu virar frade franciscano nas últimas páginas. Talvez sejam vestígios da leitora juvenil que ainda existe em mim, ansiosa por romances-óbvios-mamão-com-açucar. Vá entender. Acho melhor ir agora de Chuck Palahniuk.

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