- Deixa aí que eu cuido do corpo.
- Hã?
- É, deixa aí que eu me viro com isso. Já é tarde, pode ir pra casa.
- Tá.
- Sai, fecha a porta, sai.
Áh corpinho, tão embaciado corpo, concupiscente, ardente, sem sangue cíclico, sem vivas entranhas. A beleza da vida esconde a impavidez dos olhos na morte. De contínuo me apoquento com o hálito da existência baforando meu cangote. Admito meu êxtase de abraçar o exterminado, o decrépito, é realização de sentença, é tirar o pai da forca e meter ele lá outra vez.
Vejam só esta garota, tão linda sem a vida. Deitada nesse chão, não impondo status ou filiação. O que a vida fazia por ela? Nada, mais uma ela era, dentre a multidão de baratas descalças, correndo no calçadão, fustigadas, sem eira, nem berola de sustentação. De que vale a vida sem o calvário da razão? E quando se perece antes de entender que a existência é execrável? O que eu faço com um pleonasmo desses? O Morto está morto por não reconhecer a dor da existência.
Adoraria e vou por minha apoucada piroca no oco das pernas defuntas, desafiando a doença que o corpo dela carrega inerente. Você sabia que depois da parada cardíaca ela permanece lá? Aí, óh, pungente, pulsante, carente. A doença do corpo não morre na mente, a AIDS minha gente, ainda está ardente, aqui neste buraco não candente. Um pensamento me veio contra tudo que rima, o corpo da menina me anima, a morte tem cheiro de putrescina, misturado com cadaverina.
Dois cheiros que a carcaça libera assim que entende: estou morta! O corpo do morto ainda trabalha, semelhante ao perdigoto que deu início ao ciclo. A séria verdade horrenda é que os corpos querem ser achados. Exalando viúvos das fendas do defunto.
Odeio e invejo esses nossos quadrúpedes, os cães treinados em batalhões exclusivamente para farejar a morte fresca. Imagine a emoção de chegar primeiro na cena do crime, e poder deitar o focinho gélido na morte igualmente álgida. Esses fedores, podrinhos, que os cães farejadores assoalham têm vida própria. É possível ver o espectro deles saindo do corpo feito peidos fétidos.
Estou botando esta camisinha para me resguardar de episódios com acaso. Quero ter certeza de que o látex me manterá longe do líquido carmesim, flutuante no corpo inerte. Às vezes eu sinto falta da retórica de arrolamentos naturais, mas quando me lembro de outros carnavais, de papóides mongolóides dos mortais… Eu quero o silêncio ininterrupto do necrotério, absoluto império da minha loucura sã e salva.
Veja bem menina, ainda te dei uma estima, seria legal se você sorrisse, mesmo que não haja raciocínio em ti eu te dou um beijo, sei que não sentes, mas eu sinto. Eu sou o jurista dessa pocilga elitista, ganho três dígitos, tenho carro e sou bonito. Especializado em Necrofilia, palavra bonita que tem o legado da Grécia Antiga, onde já se cometia a antropofagia. Vεκρός “cadáver”, e φιλία [filía], “amor”. Muito prazer, Robério, o legista ao seu dispor.
(21) 9394-6666